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A Gralha Azulada da BR-319

Publicado em: 31/03/2019

Cancão-da-campina (Cyanocorax hafferi) em pleno voo. Foto: Silvia Linhares/Cedida

por Mario Cohn-Haft¹

Encontrar uma nova espécie de pássaro não acontece todo dia. E descobrir o “cancão-da-campina”, uma gralha até então desconhecida pela ciência, foi uma das maiores surpresas da minha carreira de pesquisador ornitólogo (estudioso das aves). Mas, quando aprofundamos nos estudos, muitas vezes descobrimos que o que é novo para nós, alguém já conhecia antes.

A gralha nova vive nas campinas e campos da natureza, entre os rios Madeira e Purus, ao longo da BR-319. Mas, a própria rodovia não cruza diretamente os campos e chegar até eles demanda um espírito desbravador. Em uma das minhas tentativas de alcançar um campo desses e observar a gralha, contei com a ajuda do Senhor Felipe, morador antigo da comunidade de Lago Preto.

Senhor Felipe foi destacado pelo chefe da comunidade para me acompanhar justamente por ser experiente no mato e por ter vivido a época da sorva (planta que vive em campos naturais e cujo látex já teve valor econômico no mercado mundial). Os campos de sorva (e a gralha) ficam nas cabeceiras dos igarapés, longe das comunidades de beira de lago. Ao contrário de Felipe, os jovens comunitários não conheciam o local pessoalmente, apenas por histórias.

Senhor Felipe sabia que eu me interessava por pássaros e compartilhou comigo sua experiência com um pássaro de campina. Enquanto cortava sorva nos velhos tempos, ele viu um pássaro diferente, “meio brabo, jeitão de um tchin-coã (ou alma de gato), só que azul e fazendo barulhos que nem o cancão”. Ele estava sozinho na mata e sem comida, então, depois de admirar a ave, caçou ela. Entendi na hora que Senhor Felipe não tinha apenas visto a “minha” gralha nova, mas já tinha degustado ela!

A expedição com Senhor Felipe foi um sucesso e contribuiu com informações para a descrição formal da espécie nova, que saiu eventualmente em um capítulo de livro, em inglês, entitulado: “A new especies of Cyanocorax jay from savannas of the central Amazon”. Como devem entender, uma espécie nova não é algo que surgiu agora. Pelo contrário, sempre existiu na região, mas passou batido pelos olhos dos cientistas.

O “cancão-da-campina” (com nome científico Cyanocorax hafferi), como o batizamos, estreou na ciência já ameaçado de extinção. Ocupa um ambiente tão limitado — apenas os campos entre o Madeira e o Purus—, que possui uma população muito pequena. Mas se fosse só pela distribuição restrita, isso em si não seria uma ameaça. Agora, junta isso a expansão da agricultura vinda de Boca do Acre, Porto Velho, Humaitá, Lábrea, o fogo que regularmente escapa e queima os campos por onde as pessoas passam e a drenagem dos campos que são naturalmente alagadiços. É essa conjuntura que de fato ameaça o futuro da espécie.

Já sabemos que a gralha não ocorre nos campos mais próximos a Humaitá, por onde passam as estradas, pois se estivesse lá já teria sido vista e descoberta por pesquisadores há muito tempo. Por que não tem lá? Porque esses campos queimam todo ano, e já perderam com o fogo a mata baixinha que forma a transição dos campos abertos para a mata alta, justamente o habitat que a gralha prefere.

Enfim, essa espécie nova, bonita e diferente, exemplifica o que tem de especial da biodiversidade da região da BR-319. Pode se tornar um atrativo para visitantes, turistas e curiosos, merecedor da nossa proteção, ou apenas mais uma história do passado quando essa região era realmente diferente que o resto do Brasil.

¹Ornitólogo especializado em aves amazônicas, com ênfase em biogeografia. Atualmente é pesquisador titular e curador das Coleções Ornitológicas do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa).

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