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Marco temporal e a BR-319: entenda por que a tese ameaça povos indígenas na área de influência da rodovia

Publicado em: 30/06/2023

Foto: Reprodução/Mídia Ninja

Das 69 terras indígenas na área de influência da BR-319, e monitoradas pelo Observatório BR-319, apenas duas foram homologadas antes de 5 de outubro de 1988. A condição não traz mais segurança aos territórios em caso de vigência do marco temporal, tese jurídica que questiona a ocupação de territórios indígenas antes da promulgação da Constituição de 1988, mas mostra como este marco da redemocratização do Brasil foi importante para a defesa dos direitos indígenas, que agora estão ameaçados. 

Em todo o país a situação é preocupante, especialmente em territórios como na rodovia BR-319, que são pressionados por obras, invasões e desmatamento. Em se tratando de povos isolados, a situação fica ainda mais grave, porque eles poderiam ser alvo de contato compulsório. 

Na área de influência da BR-319, as Terras Indígenas (TIs) Apurinã Igarapé Tauamirim, do povo Apurinã, em Tapauá (AM), e Karitiana, do povo de mesmo nome, em Porto Velho (RO), foram homologadas em 1986. Na rodovia existem, pelo menos, seis registros de povos isolados: os Katawixi, os Kagwahiva, os Hi-Merimã, os Maici, os Mucuim e, mais recentemente, os do Mamoriá Grande. O indigenista e gerente de povos isolados da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Luiz Fernandes Neto, afirma que a tese do marco temporal fere princípios constitucionais no que diz respeito a estes povos. “A política indigenista brasileira abandonou a prática de contato com povos isolados há anos devido aos efeitos negativos, com o PL 2903 [número do projeto em tramitação no Senado], que traz a tese do marco temporal, que pode virar lei se aprovado, ele traz essa política de não contato flexibilizada e isso é uma ameaça direta aos povos indígenas isolados”, avalia. 

A coordenadora secretária da Coiab, Marciely Ayap Tupari, explica que o marco temporal tem duas questões: o julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF), que traz a tese do marco temporal para julgar o caso do território do povo Xokleng e a votação no Senado Federal como PL nº 2.903/2023, que traz, além da violação de direitos aos povos isolados, mais 14 projetos que afetam diretamente os indígenas. “A tese do marco temporal pode paralisar o processo de homologação destes territórios indígenas e abri-los para a grilagem, garimpo e desmatamento, além de favorecer a instalação de projetos de infraestrutura como construções de rodovias, hidrelétricas e outras obras em terras indígenas sem consulta livre, prévia e informada das comunidades afetadas violando a própria convenção 169 da OIT. Em todos os seus aspectos, o marco temporal é uma ameaça aos povos já tem contato e aos povos que vivem de forma autônoma”, acrescenta Tupari. 

O antropólogo e indigenista Bruno Walter Caporrino, referência na criação de protocolos de consulta de povos indígenas na Amazônia, alerta que a tese do marco temporal é hedionda. “Essa pretensa ‘tese’ é criminosa, hedionda, pois diz que só se deve demarcar terras indígenas dos povos que não foram exterminados ou expulsos de onde estiveram há milênios. O simples fato dessa hedionda proposta ser julgada pelos poderes judiciário e legislativo, no contexto histórico em que do aumento do desmatamento e do número de ameaças e assassinatos de povos indígenas, impõe a esses povos perseguidos e ameaçados ainda mais insegurança jurídica”, diz. “Considerando-se tudo isso, é de um cinismo tão absurdo a tese do marco temporal que o poder judiciário brasileiro e o poder legislativo deveriam ser julgados por colocar isso em pauta”, defende. 

“A correlação é inquestionável, pois a ameaça feita pelo Estado, de retirar desses povos seus direitos originários, direitos humanos fundamentais, excita ainda mais os agentes interessados em tomar suas terras, causando extrema insegurança jurídica – e física – a esses povos. O fato do julgamento e do PL estarem em curso estimula a aposta de atores criminosos que, como vemos na prática, se sentem mais à vontade, mais seguros, encorajados em apostar no assassínio e no extermínio, para se apropriar de terras. Os poderes judiciário e legislativo devem ser julgados e responsabilizados por isso: é inquestionavelmente responsabilidade deles cada gota de sangue derramada nesse contexto”. 

Bruno alerta que os povos indígenas sempre estiveram no território que é chamado de Brasil, muito antes dos invasores europeus chegarem. “É incontestável que a presença dos povos indígenas na Amazônia data de mais de 8 mil anos atrás. Estudos recentes, publicados em periódicos como Science e Nature, caso do estudo conduzido pela pesquisadora Carolina Levis, endossam com novos dados e provas aquilo que arqueólogos e outros cientistas já vêm provando cientificamente na última década: a Amazônia é fruto, justamente, da interação entre povos indígenas e a floresta e seus animais”, destaca Caporrino. “Há alguns milhares de anos, antes do ano 1500, esses povos chegaram e se instalaram e, com seus modos de vida, graças aos seus conhecimentos, foram, literalmente, domesticando a floresta até torná-la o que é hoje. Mais do que mata virgem e intocada, ela é um grande jardim cultivado por milênios”, acrescenta. 

O marco temporal defende que somente os indígenas que estivessem sobre a área dos territórios que ocupavam em 5 de outubro de 1988 teriam direito às terras, desconsiderando as violências e o esbulho que estes povos sofreram e que os obrigaram a deixar seus territórios. “Os sucessivos ciclos genocidas de colonização provocaram, contudo, o assassinato, o genocídio desses povos. Se pararmos para ler os Autos da Devassa, vemos que desde sua chegada à Amazônia os não indígenas fazem verdadeiras expedições de caça aos povos indígenas: pelos Autos da Devassa, lei do Estado, era obrigatório caçar e exterminar, por exemplo, todo e qualquer indígena Mura encontrado. Era lei”, explica Caporrino. “Uma imensa gama de estudos diversos comprova que as ‘correrias’, por exemplo, expedições de caça para escravização ou extermínio – caso houvesse resistência – de povos indígenas provocaram sucessivos e dramáticos deslocamentos desses povos, muitas vezes mortos em fuga ao ponto de sequer sabermos realmente quais eram e como eram os povos que habitavam a região, porque povos inteiros sumiram exterminados”, explica Bruno. 

“Há regiões onde os indígenas foram expulsos pelo agronegócio mas estes povos se empoderaram nas lutas sociais e começaram a lutar para retomar as áreas subtraídas na guerra instalada na Amazônia”, explica o analista do IEB, Josinaldo Aleixo. “Outro nível de preocupação é a judicialização das terras decretadas e homologadas pós 1988. Será uma tragédia terrível! Imagina só no Amazonas: a maior parte da TIs entraria em questão”, analisa. “Imagina fora do eixo da BR-319, em Lábrea, Pauini e Boca do Acre?”, reflete. 

Proposta danosa 

A consultora da Iniciativa de Governança Territorial do Instituto de Conservação e Desenvolvimento Sustentável da Amazônia (Idesam), Tayane Carvalho, chama a atenção para aspectos danosos do projeto de lei que tramita no Senado. “É importante falar que, na região da BR-319, existem diversos territórios indígenas que ainda não foram demarcados, portanto, o marco temporal impedirá a demarcação das terras que não forem consideradas efetivamente ocupadas antes de 5 de outubro de 1988, além de trazer como proposta a não expansão dos territórios que já foram demarcados”, explica. Na área monitorada pelo Observatório BR-319, existem sete terras indígenas em processo de homologação. 

“Outra questão relevante é que o projeto prevê que seja retirada do governo federal (Poder Executivo) a incumbência dos processos de demarcação, repassando essa atribuição aos parlamentares (Poder Legislativo). Com uma bancada de deputados e senadores majoritariamente ruralista será cada vez mais difícil aprovar a demarcação de terras”, destaca Carvalho. 

Tayane também avalia que a permissão para ações que impactam o modo de vida dos indígenas, sem consulta às comunidades, pode afetar serviços ambientais que beneficiam a sociedade em geral. “O projeto prevê, também, que o ‘poder público possa instalar redes de comunicação, estradas, equipamentos e outras construções que forem consideradas necessárias para prestação de serviços públicos em terras indígenas’. Pensando na questão ambiental acho que dá pra ter uma ideia do impacto dessas obras tanto nos modos de vida tradicionais desses povos, como no papel que as TIs têm desempenhado na manutenção da floresta em pé e na conservação ambiental de forma geral, pois essas construções alteram a paisagem, causam desmatamento e, dependendo da quantidade e proporção desses empreendimentos, podem atuar na contramão das ações de sustentabilidade e mitigação dos efeitos das mudanças climáticas. Além disso, vai na contramão do que é designado pela Convenção 169 da OIT, que prevê a consulta livre, prévia, informada e de boa-fé antes da realização de qualquer obra ou alteração na TI”, avalia. 

A consultora conclui alertando para o acirramento dos conflitos que podem tornar a Amazônia uma região ainda mais violenta. “Alguns especialistas têm falado sobre o fato de que o marco temporal poderá encorajar o início de novas disputas, por exemplo, em terras já pacificadas, pois pode haver invasão de TIs ou ações na Justiça solicitando a expulsão de povos indígenas de certos locais”. 

Conflitos 

O indigenista da Operação Amazônia Nativa (Opan), Renato Rocha, avalia que o principal impacto do marco temporal será a criação de um clima de insegurança na região da BR-319 relacionado a questões fundiárias. “Principalmente pelo acirramento de conflitos locais de disputa por terras, tendo em vista que a região está dentro do arco do desmatamento, que é uma área de interesse de expansão do agronegócio e de outras atividades”, diz. “Mas, também, pode fortalecer vários preconceitos históricos que existem em relação aos povos indígenas da BR-319 e isso tudo, principalmente, por conta da possibilidade de impulsionar questionamentos descabidos, sem nenhum embasamento sobre a ocupação tradicional desses povos na região”, enfatiza.  

“Falando especificamente sobre o preconceito, que já é uma realidade vivenciada pelos povos indígenas há tempo na região, o PL 2903 e a tese do marco temporal, trazem vários pontos preocupantes e um deles é a possibilidade de o Estado retomar terras indígenas no caso de identificação de alteração de traços culturais. Isso é um pensamento racista, que não tem fundamento lógico, pois o Estado não pode definir se os povos são ou não indígenas, isso cria um questionamento da identidade indígena e desrespeita completamente o direito a autodeterminação desses povos, e isso pode ocorrer justamente vinculado a disputas pelos territórios, que são de interesse de várias frentes econômicas, desde frentes minerárias até o agronegócio”, explica Renato.   

A contestação da demarcação de territórios também é uma possibilidade favorecida pelo PL 2903. “Isso pode acontecer com terras indígenas que ainda não tiveram seus processos demarcatórios concluídos pelo Estado e na região da BR-319 existem algumas terras que ainda não foram homologadas. Mas, é importante destacar, que o direito originário dos povos indígenas a essas terras está previsto na Constituição e a demarcação é um procedimento declaratório, o que significa que o reconhecimento deste direito não depende da demarcação feita pelo Estado e, para além disso, o que o PL traz é que as contestações podem ser feitas em qualquer fase do processo demarcatório da terra indígena, o que também não faz sentido. Qualquer procedimento administrativo do Estado deve ser sim aberto a contestações, mas isso deve ser feito em uma etapa específica do processo. O acirramento de conflitos pode ocorrer com a possibilidade dessas contestações serem feitas em qualquer etapa do processo, o que também diminui direito originário dos povos ao território”, explica o indigenista da Opan.   

Por fim, Renato também manifesta preocupação sobre a expansão de projetos em terras indígenas. “O PL prevê a expansão de empreendimentos como malha viária e alternativas energéticas nestes territórios sem a exigência de consulta, isso é um desrespeito aos direitos fundamentais, aos direitos humanos e, também, à Convenção 169 da OIT, que garante aos povos indígenas o direito de serem consultados em relação a qualquer coisa que possa impactar o modo de vida deles. Esses pontos são problemáticos e podem suprimir direitos importantes que são reconhecidos internacionalmente”, conclui. 

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