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Ausência de gestor na Floresta Estadual de Tapauá dificulta acesso a políticas públicas

Situação apontada por moradores e lideranças prejudica a qualidade de vida e favorece invasões ao território

Publicado em: 04/01/2022

Comunidade ribeirinha nas proximidades da FES Tapauá. Foto: Cristie Sicsú/OBR-319

Com uma área de 881.704 mil hectares e, pelo menos, seis comunidades, a Floresta Estadual (FES) Tapauá, na calha do rio Purus, abriga populações indígenas e extrativistas que enfrentam diversos desafios, os maiores são ligados ao saneamento básico e ao acesso a políticas públicas. Lideranças locais apontam a falta de um gestor específico para a área protegida como
a raiz da situação. Além disso, desde 2018, a floresta vem registrando
índices crescentes de desmatamento, que atingiu recordes em 2021.

O Observatório BR-319 esteve em Tapauá, a 449 quilômetros da capital, Manaus (AM), em novembro. Na ocasião, a equipe, liderada pela pesquisadora Paula Guarido, esteve com lideranças comunitárias e indígenas, além de autoridades municipais. Foram diversos os relatos de invasões, atividades ilegais e problemas relacionados à ausência do Estado em Áreas Protegidas do município.

A reivindicação mais presente na fala dos moradores da FES Tapauá foi sobre a presença de um gestor na Unidade de Conservação. Segundo o líder da comunidade Paiol, Edilson Santana, a presença de um gestor facilitaria o acesso a todos os tipos de direitos para os moradores do local. “Não temos comunicação, nossa comunidade fica há duas horas de lancha [da sede] de Tapauá e, para se comunicar, a gente tinha rádios comunicadores
que eram da reserva, mas está tudo desativado e não recebemos nenhum técnico para consertar. A falta do gestor contribuiu para esses problemas, com certeza”, disse Santana.

Raimundo Firmiano, líder das comunidades Baturité e Jatuarana e, também, representante da Associação Agroextrativista dos Moradores da Floresta Estadual Tapauá (Ammfet), diz que um dos maiores problemas vividos pelas comunidades é o acesso precário ao fornecimento de energia elétrica. “Temos um gerador de energia que dura cinco horas, mas, às vezes, falta o diesel por uns 30 dias e, durante esse tempo, a gente fica sem energia”, diz. O acesso à educação, à saúde e à água potável também são escassos, segundo o líder. “Na comunidade de Baturité temos uma escola para alunos até a 4ª série, um poço e um agente de saúde, mas, na comunidade Jatuarana não tem poço, nem escola e lá não existe agente de saúde desde o ano passado [2020]”, disse Firmiano.

A liderança contou, ainda, que as comunidades já solicitaram medidas de acesso a diversas políticas públicas, mas não tiveram retorno até agora. Ele acredita que um gestor poderia facilitar a mediação. “Já solicitamos acesso a auxílios do governo, mas não fomos contemplados com nada, então, para melhorar a gente tinha que ter acesso a esses benefícios e, principalmente, ter um gestor”, enfatiza Firmiano.

Já a comunidade indígena Ponta do Evaristo, onde vivem 69 pessoas, está sem energia desde 2018, quando o gerador doado pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) parou de funcionar. “Depois que isso aconteceu ficamos sem acesso à energia. Também temos dificuldade de acesso à água, porque usamos a água de um lago que é distante da comunidade, cerca de 25 minutos”, conta o cacique e líder da comunidade, José Alves. “Já tentamos buscar apoio, mas, até agora, nada. O nosso povo precisa de uma estrutura melhor para sobreviver, é isso que falta para melhorar a comunidade”, acrescentou. “A gente quer mudança, um desenvolvimento cada vez maior para o povo indígena, para que tenhamos acesso a todos os tipos de direitos humanos, porque a gente não tem acesso a nada. Precisamos de apoio do governo com recursos para ter uma gestão

da região”. Além desses problemas, a comunidade indígena ainda enfrenta invasões para retirada ilegal de madeira do seu território. “Com uma gestão, acredito que a gente pode preservar a nossa comunidade, nossa região, e creio que ninguém vai correr o risco das ameaças dos invasores”, finaliza José Alves.

No site da Secretaria de Estado do Meio Ambiente (Sema), consta o nome de Rogério Sampaio Bessa como gestor provisório da FES Tapauá e outras duas UCs, o Parque Estadual (Parest) Serra do Acará e a Reserva Biológica (Rebio) Morro dos Seis Lagos. Por meio de nota, o chefe do Departamento de Mudanças Climáticas e Gestão de Unidades de Conservação (Demuc), Gleidson Aranda, acrescentou que “a gestão das 42 unidades de conservação estaduais é realizada pela Sema por meio do Demuc” e que “a Floresta Estadual de Tapauá não possui um gestor fixo no município, sendo que a gestão é realizada de acordo com as demandas (identificadas por esta Sema ou apresentadas pelos moradores da UC) e disponibilidade de recursos, sendo executadas pela Sema e demais instituições governamentais quando se trata de ações de fiscalização a ilícitos ambientais”.

Desmatamento

A Floresta Estadual de Tapauá foi criada em 2009 antevendo pressões provocadas pela repavimentação da BR-319. No entanto, o crescente desmatamento e a falta de gestão têm colocado em risco o papel da UC, localizada entre os municípios de Tapauá e Canutama. Durante a visita ao local, o OBR-319 aplicou questionários socioambientais para mapeamento das cadeias produtivas existentes e em potencial, além de atividades ligadas à bioeconomia.

“Ouvimos relatos, principalmente, sobre invasões para a prática de atividades ilegais dentro da UC e casos de pesca ilegal”, conta a pesquisadora Paula Guarido. Ela acrescenta que os moradores consideram o ramal Belo Monte, que vem de Canutama, um dos pontos vulneráveis da FES. “Eles dizem que esse ramal é bastante recente, que surgiu do começo da pandemia para cá. O rio Ipixuna também é protagonista de diversos relatos, inclusive, de que moradores desta região já são ameaçados por invasores que praticam atividades ilegais na área”, acrescenta.

“Algumas pessoas relataram que as atividades ilegais começaram depois da saída do gestor da FES Tapauá. Mas que, há mais ou menos dois anos, essas atividades estão aumentando em proporção. Checando as imagens e os dados de desmatamento, é perceptível que os relatos dos comunitários fazem sentido e que esse processo, realmente, teve início neste intervalo”, acrescenta Paula Guarido.

A FES Tapauá é uma área com diversas complexidades. As principais dizem respeito à geografia, pois a floresta abrange uma grande área e é cortada por rios extensos, como o Jacaré, que fica a 32 km da comunidade Belo Monte, além do Jatuarana, do Itaparanã e do Ipixuna, que liga a UC ao Distrito Realidade, em Humaitá (AM).

De acordo com dados do Sistema de Alerta de Desmatamento (SAD) do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) a primeira vez que a FES Tapauá registrou desmatamento foi em junho de 2018, com 0,86 ha de área desmatada. Desde então os números só aumentam. Em 2021, a UC alcançou recordes históricos de desmatamento, com uma estimativa de 184,10 ha de perda florestal (Confira a tabela com a série histórica).

Ausência de gestor leva ao risco de devastação

Não é de hoje que os problemas de gestão ambiental do Amazonas chamam a atenção de órgãos fiscalizadores. Em 2020, o procurador do Ministério Público de Contas do Amazonas (MPC-AM), Ruy Marcelo Alencar de Mendonça, fez um Alerta de Responsabilidade Fiscal ao governo do Estado, para que fossem reavaliadas e fortalecidas “a gestão financeira, de recursos humanos e de materiais em ações de comando e controle no enfrentamento ao desmatamento e queimadas ilegais” a fim de que a gestão não tivesse as contas do exercício de 2019 reprovadas. A proposta foi acatada pelo Tribunal de Contas do Estado.

Mas, segundo o procurador, o governo não deu uma “resposta consistente e com resultados sensíveis”, por isso, em agosto de 2021, o alerta se converteu em 13 representações contra o governador Wilson Lima (PSC), “por aparentes danos florestais, ambientais, climáticos e patrimoniais, em decorrência da reiterada omissão de combate ao desmatamento ilegal no Amazonas” em municípios do estado, entre os quais Tapauá.

Ao OBR-319, o procurador explicou que tomou a medida devido “à evidência de fragilidade e deficiência de gestão das Unidades de Conservação”. E acrescentou: “Constatamos a designação precária, para compor o serviço, de um único agente público, na maioria dos casos temporário e terceirizado, para promover os atos de gestão em cada UC, sem adequado suporte de recursos humanos e materiais assegurados em orçamento público, fundamentais para se ter o mínimo controle e gerenciamento das extensas áreas protegidas. Também não há adequada estrutura para fiscalização territorial, o que inviabiliza até mesmo os recentes projetos de exploração sustentável, porque, com a ausência do Estado, não há como assegurar a integridade das concessões florestais a pessoas privadas.”

De acordo com informações atualizadas no site da Sema pelo Demuc em 28 de dezembro de 2021, a secretaria dispõe de 14 gestores para 35 das 42 Unidades de Conservação estaduais. Alguns deles, chegam a gerir sete UCs, e apenas quatro possuem um gestor exclusivo.

“Portanto, cumprimos dever de ofício e representamos ao TCE-AM (Tribunal de Contas do Estado do Amazonas) contra esse estado de coisas”, explica Ruy. “Falta consolidar a implantação das unidades e promover efetiva gestão capaz de realizar os fins que presidiram a criação das unidades”, disse ao OBR-319 o procurador.

“Não basta delimitar em cartório a área. Não basta elaborar no papel um plano de gestão ou de manejo florestal. Faz-se necessário dotar, efetivamente, os espaços de mecanismos que possam estruturar em campo as condições socioambientais favoráveis à manutenção dos atributos naturais protegidos e ao desenvolvimento humano. Atendendo a uma de nossas representações, contra vícios desde governos passados, relativamente às UCs da área de influência da BR-319, o Tribunal de Contas expediu recentemente o Acórdão nº 743/2021 – Pleno, que demanda providências do governo atual para reverter o quadro na área”, acrescentou.

Ruy avalia que se a situação persistir, “o risco é de devastação. Sem exagero”. Obras como a BR-319 e a frágil governança na área de influência da rodovia são agravantes para o cenário. “No contexto regional de aumento populacional por fluxo migratório crescente e de grandes obras e empreendimentos sem a devida sustentabilidade, a falta de adequada gestão das UCs ameaça a integridade e frustra a própria razão de ser desses espaços juridicamente protegidos”. O procurador também chama a atenção para o colapso climático, agravado pela perda de cobertura florestal nestas áreas. “Sem a equipe e os instrumentos para eficiência de gestão no local, não há como garantir governança territorial nem o desenvolvimento de políticas públicas de conservação e proteção. As unidades florestais ficam vulneráveis a invasões e a usos nocivos que causam severa degradação ambiental, com a conseguinte exclusão e opressão das populações tradicionais e a perda dos atributos naturais da biodiversidade amazônica e de seus serviços ecossistêmicos em benefício à sadia qualidade de vida e ao equilíbrio climático”, avaliou o Ruy Marcelo.

O procurador também destaca que toda a área compreendida pelo bioma Amazônico em território brasileiro, segundo o Artigo 225 da Constituição, é reconhecida como espaço especialmente protegido, cuja preservação e conservação incubem a todos os entes federados. “Não obstante, quando, por ato específico, como parte de sua missão constitucional, o estado do Amazonas cria uma UC, assume o dever de promover a mais particularmente adequada ordenação destes territórios como parte integrante de seu patrimônio ambiental e como objeto de função gerencial estadual, em caráter indisponível e irrenunciável”, disse. “Os agentes do Poder Executivo, passados e atuais, são, em tese, responsáveis pelos danos decorrentes de eventual má gestão, na forma da lei, tanto por ações divorciadas da Lei assim como por atos de terceiros somados à sua negligência em relação a programas de desenvolvimento e ao combate às causas de degradação e desflorestamento”, finalizou Ruy Marcelo.

Alternativas

As atividades ilegais realizadas dentro da FES Tapauá representam perdas de diversas maneiras para os moradores da UC. “Eles têm a segurança afetada, a qualidade de vida comprometida e perda de recursos, porque os invasores, normalmente, retiram madeiras de espécies de interesse comercial para vender de maneira ilegal. Só quem ganha são os criminosos, não os moradores da FES”, explica a secretária executiva do Observatório BR-319, Fernanda Meirelles.

O coordenador do Cidades Florestais Madeira-Purus no Instituto de Conservação e Desenvolvimento Sustentável da Amazônia (Idesam), Marcus Biazatti, explica que algumas áreas da FES Tapauá já perderam o potencial para exploração de manejo florestal, pois estão localizadas na margem da estrada e tiveram as espécies de interesse comercial retiradas. “O intuito do projeto é fazer uma análise de dados e mapear o potencial de manejo florestal junto a comunidade. Também queremos implantar salvaguardas que garantam o protagonismo da comunidade na exploração de manejo florestal. Assim, mostraremos aos entes públicos que há a possibilidade de fazer parcerias entre a comunidade e o mercado interessado através de regras definidas pela própria comunidade e respeitando a legislação, totalmente fora das concessões públicas”, esclarece.

Mas ainda existem atividades ligadas à bioeconomia como a produção de açaí e extração de óleo de copaíba que podem se converter em opção de renda sustentável para as comunidades, desde que tenham a cadeia de valor estruturada. “As comunidades da FES Tapauá já vivem de atividades sustentáveis como o extrativismo, a agricultura familiar e a pesca. Elas também têm em vista outras atividades em potencial, mas que, por diversos motivos, ainda não começaram a desenvolvê-las, o açaí é um exemplo”, relata a pesquisadora Paula Guarido. “Diversos moradores relataram que o fruto é abundante na FES, mas que por ser perecível, necessitam de uma estrutura de armazenamento e refrigeração. Além do mais, eles relatam que não tem compradores no município. Essa cadeia é uma boa oportunidade, mas precisaria ser melhor estruturada. O óleo de copaíba também é um produto citado por eles, mas nem todos os comunitários sabem manejá-lo adequadamente e precisam de treinamento e assessoramento técnico para desenvolver a atividade”, conclui.

A Floresta Estadual Tapauá está localizada entre os municípios de Tapauá e Canutama e foi criada pelo Decreto nº 28.419 de 2009, durante o governo de Eduardo Braga e na gestão da secretária de meio ambiente e desenvolvimento sustentável Nádia Cristina D’ávila Ferreira. A UC possui plano de manejo e conselho gestor.

Matéria produzida em parceria com a jornalista Cristie Sicsú, enviada especial do OBR-319 a Tapauá (AM).

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