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Caarim inicia implantação do plano de gestão do território do rio Manicoré

Publicado em: 01/07/2022

Desde o início de junho, a Central das Associações Agroextrativistas do Rio Manicoré (Caarim) está executando uma série de ações para a implantação do plano de gestão do território do rio Manicoré. Entre elas, estão a instalação de placas de sinalização dos limites do território, reuniões sobre a importância da Concessão de Direito Real de Uso (CDRU) e o cadastramento dos moradores das 15 comunidades da área. Além disso, a Caarim também recebeu apoio de uma expedição do Greenpeace Brasil, organização membro do Observatório BR-319, que contou com a colaboração de cientistas de diversas áreas para a realização do inventário de biodiversidade do território, uma das partes mais caras e importantes do plano de gestão.

“Temos muitos parceiros e esse trabalho tem sido muito importante, pois graças a eles estamos com diversas atividades em campo e conseguindo avançar com as nossas ações”, avaliou a presidenta da Caarim, Maria Cléia Delgado. “As pessoas veem a Caarim trabalhando e perguntam: de onde vocês conseguem tanto recurso para fazer tudo isso? E a gente responde: são os nossos parceiros! Essa expedição vai contribuir muito para a consolidação da CDRU”, destacou Maria Cléia. Ela explicou que para a criação do plano de gestão do rio Manicoré, é necessário o cumprimento de um cronograma de atividades para a produção de informações que devem embasar o documento. “Talvez, ainda este ano, tenhamos uma primeira versão do plano”, revelou.

Além da segurança da regularização fundiária das comunidades, a CDRU também garante acesso a políticas públicas de financiamento de atividades sustentáveis, como agricultura familiar, turismo, pesca e extrativismo. Nisso, o rio Manicoré demonstra ter potencial, pois, hoje, a subsistência e a renda das comunidades são asseguradas pela produção agroextrativista, mas ainda existem muitas possibilidades de exploração de produtos da sociobiodiversidade.

Feijão produzido na comunidade Terra Preta. Foto: Izabel Santos/OBR-319

“A produção no rio Manicoré não pára. No inverno, produzimos açaí, castanha e tucumã. No verão, produzimos farinha, mandioca, feijão, melancia e abobrinha. Fora copaíba, andiroba, banana, feijão e o pescado de espécies como jaraqui, matrinxã, sardinha e muito mais. Isso não só nos alimenta, como também gera um dinheiro a mais para as famílias”, explicou a presidenta da Caarim. A expectativa pelo acesso a recursos que possam incrementar essa produção é grande. “Com o acesso a benefícios vamos poder investir nas nossas produções, vamos poder produzir mais e com mais qualidade, tornar o nosso trabalho mais competitivo”, espera o presidente da comunidade Três Estrelas, André de Oliveira Mota.

Produção de farinha na comunidade Parintintins. Foto: Nilmar Lage/Greenpeace Brasil

Outras melhorias que respeitem o modo de vida das comunidades tradicionais também são aguardadas. “Precisamos de acesso à educação, à saúde e melhorias na estrutura das comunidades, que venham a suprir as necessidades reais dos moradores do rio Manicoré”, comentou o agricultor e agente de saúde Raimundo Nonato de Vaz Lago, o Nato, da comunidade Bom Fim, vizinha à Três Estrelas. No dia em que o Observatório BR-319 conversou com Nato, ele estava trabalhando na instalação de postes de energia elétrica na sua comunidade, que pela primeira vez terá acesso ao serviço através do programa Luz para Todos.

Nato do Bom Fim é agricultor e agente de saúde. Foto: Izabel Santos/OBR-319

O acesso à educação superior também é um dos anseios de Dinalva dos Reis, moradora da Terra Preta. Diariamente, ela faz o transporte de barco de estudantes de diversas comunidades para a escola na Três Estrelas. “Seria bom que os alunos que já terminaram o Ensino Médio tivessem acesso à internet, para poder dar continuidade aos estudos através da educação à distância. Eu sou uma das pessoas que têm interesse nisso. Meu sonho é fazer pedagogia ou outro curso ligado à agricultura, mas sem sair daqui”, revelou.

Até o fim de junho, cerca de dez placas de sinalização demarcando o território de uso comum do rio Manicoré foram instaladas em terra firme, nas comunidades, e em árvores, às margens do rio Manicoré. A ação é importante para reprimir a ação de invasores e mostrar que se trata de terras ocupadas por populações tradicionais. A comunicação do Observatório BR-319 acompanhou a instalação de algumas dessas placas, uma delas na comunidade Três Estrelas. “A entrega destas placas significa muito para todos nós”, comemorou o presidente da comunidade. “Nós estávamos esquecidos e sem esperanças, mas, agora, com a assinatura da CDRU pelo governador, a gente sabe que a terra é nossa e isso dá um ânimo a mais. Não vamos mais abrir mão desta terra, porque ela é nossa”, falou ao Observatório BR-319 durante a cerimônia de instalação da placa.

Respeito

Por onde se anda no rio Manicoré é possível ver fartura. No alto dos barrancos ficam casas, grandes e de madeira, com fachadas voltadas para o rio, como que para contemplar as águas verdes escuras que correm entre as árvores. Ao redor das casas estão quintais agroflorestais, com hortas e pomares de pés de açaí, ingá, cacau, caju e até castanhais. A realidade contrasta com discurso realizado pelo governador do Amazonas, Wilson Lima, no dia 14 de junho em Manicoré. “Não faz sentido você deixar uma árvore em pé se o nosso povo está passando fome”, disse o governador. Na mesma ocasião, ele também assegurou que lutará contra a criação da Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) Rio Manicoré: “Por isso, meus amigos, tem uma situação que está acontecendo lá no rio Manicoré. Tem gente dizendo, levantando a ideia, de que se vai criar uma reserva ali. Esqueça, que não há a menor possibilidade de isso acontecer. Eu vou lutar contra quem quiser fazer isso, vou até as últimas consequências”, disse sob aplausos.

As declarações do governador não abalaram o ânimo dos moradores do território com os quais o Observatório BR-319 conversou. “Ninguém está falando em criar Unidade de Conservação neste momento. Nosso foco é a consolidação da CDRU e a boa gestão do nosso território”, rebateu a presidente da Caarim, Maria Cléia. “A questão da fala do governador, eu vou levar como pura política”, disse o vice-presidente da Associação dos Produtores Agroextrativistas da Comunidade do Estirão (Aproface), Cristian Alfaia. “Quanto à Unidade de Conservação, eu acho que nenhum governador, prefeito ou vereador tem que discutir isso, pois quem tem que querer [a RDS] são os moradores do rio Manicoré”, avaliou. “Se nós acharmos que é viável, que é possível uma Unidade de Conservação, eu creio que devemos ser escutados com bons tons”, disse Alfaia.

Entenda a luta dos moradores do rio Manicoré pela criação de RDS

Nato do Bom Fim disse que não troca a vida que leva no rio Manicoré por nenhuma outra. “Num interiorzão desse aqui a gente come tudo natural, muita fruta e muito pescado, até caça a gente tem. Só que tudo aqui depende da natureza e tem um tempo que precisa ser respeitado. Tem época da produção da roça e tem a época da produção do extrativismo, tem época da mandioca, do açaí, da castanha e da copaíba, e por aí vai”, contou.

Nascida e criada em Manicoré, a pesquisadora da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e articuladora da Rede Transdisciplinar da Amazônia (Reta), Jolemia Chagas, avalia que os comentários do governador não devem interferir na luta dos moradores do rio Manicoré pela criação de uma Unidade de Conservação no local. “É um direito das populações tradicionais terem acesso à terra, independente da vontade do governador. Infelizmente, ainda existem pessoas desinformadas como o senhor Wilson Lima, que acabam por espalhar informações falsas sobre o modo de vida de populações tradicionais e as suas lutas”, disse Jolemia. “O governador do Amazonas precisa estudar mais sobre a diversidade amazônica para aprender a valorizar quem realmente produz e alimenta as pessoas que vivem nas cidades. São agroecossistemas como os que existem no rio Manicoré que colocam peixe, farinha e outros alimentos na mesa do consumidor, também são eles que promovem justiça social e distribuição de renda”, explicou a pesquisadora.

“Além disso, é importante entender o quanto o modo de vidas das populações tradicionais traz autonomia a elas, que não são altamente dependentes do mercado por causa das atividades sustentáveis de manejo, extrativismo, coleta, pesca, entre outras. Mas é mais importante ainda entender que essa autonomia só é possível com a floresta em pé. E para que ela se mantenha, é necessário que o Estado faça a parte dele, assegurando a continuidade do modo de vida das populações tradicionais e combatendo atividades que as colocam em risco”, finalizou Jolemia.

Chocolate artesanal do rio Manicoré

Em um dos pontos mais altos da comunidade Terra Preta, onde o acesso pelo rio é íngreme e até intimidador para os desavisados, mora a agricultora e pescadora, Sebastiana Parente Batista. No quintal de casa ela colhe cacau e produz o chocolate caseiro mais perfumado da comunidade, que tem apreciadores do território até o município de Ji-Paraná, em Rondônia. Além de gerar renda, ele também alimenta a família de Sebastiana. “É a minha especialidade”, conta sorrindo. A receita é uma herança familiar. “Aprendi a fazer o chocolate com a minha mãe”, contou.

Cacau do quintal da Sebastiana Batista, na comunidade Terra Preta. Foto: Izabel Santos/OBR-319

Sebastiana já morou quatro anos em Porto Velho (RO), mas não se adaptou e regressou ao rio Manicoré, onde ela considera ter mais qualidade de vida e segurança para criar seus filhos. “Aqui eu tenho fartura, não fico gastando todo dia dinheiro. Na cidade a gente sai e tem que comprar pão. Aqui, a gente cozinha macaxeira e faz coxinha, frita e toma com café, chá ou chocolate. Também faz bolinho, mingau, tapioca”, garante. Sebastiana se considera uma pessoa rica pela vida no território. “Eu gosto da natureza, porque aqui é mais calmo. Quando eu vou para a cidade eu fico agoniada. Aqui eu vou para o mato, tiro uma lenha, vou para a beira do rio pescar de caniço, de malhadeira”, diz.

Sebastiana mostra como prepara o chocolate artesanal. Foto: Izabel Santos/OBR-319

União pelo rio Manicoré

O território do rio Manicoré é o protagonista da expedição “Amazônia que Precisamos!”, promovida pelo Greenpeace Brasil e que conta com o engajamento de todos os escritórios internacionais da organização. Durante o mês de junho, cerca de cem profissionais, entre cientistas de diversas áreas e jornalistas, percorreram as comunidades do rio Manicoré realizando levantamentos de biodiversidade, nas áreas de fauna, flora e hidrologia, além de reportagens com os moradores locais, para dar visibilidade à luta pela defesa do território.

O representante do Greenpeace Brasil na Amazônia, Rômulo Batista, conta que a ideia de ir ao rio Manicoré foi amadurecida nos últimos dois anos. “A expedição do rio Manicoré já estava pronta para acontecer em 2020, mas, devido à pandemia, tivemos que adiar nossos planos”, revelou. “Mas tudo acontece na hora certa. Com a vacina, as condições sanitárias da pandemia se tornaram mais seguras, e a CDRU veio fortalecer a luta dos moradores do rio Manicoré. Tudo caminhou para que a expedição acontecesse agora”. Sobre a escolha do rio Manicoré para a expedição, Rômulo explica: “O fato de a Caarim ser ativa e engajada ajudou bastante na escolha do território para a campanha. A luta do rio Manicoré tem rostos e nomes organizados, tem personalidade jurídica constituída e tem relacionamento consolidado com seus parceiros”.

Biólogo por formação, Batista é um entusiasta das Unidades de Conservação de Uso Sustentável. O gosto veio pela convivência com os amazônidas. “A Amazônia é linda e muito importante, mas o que a torna mais especial são os seus habitantes, as populações tradicionais e indígenas que vivem no chão da floresta”, disse. “A floresta é biodiversa e pujante, porque foi moldada pelas pessoas que a habitaram ao longo do tempo. Existem evidências científicas que comprovam que paisagens como os castanhais e buritizais só existem porque foram plantadas por populações que dominavam o manejo destas espécies. Trabalhar pela conservação do modo de vidas das populações tradicionais é a garantia da manutenção da floresta em pé”, acrescentou.

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