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Desenvolvimento territorial da BR-319 deve ser adequado às diversas realidades que envolvem a rodovia

Publicado em: 01/09/2022

Territórios devem ser protagonista de decisões sobre empreendimentos. Foto: FGVces

As comunidades da área de influência da BR-319 agora têm mais um instrumento para orientar sobre o bem-estar dos seus moradores: a Agenda de Desenvolvimento Territorial da Região da BR-319 [link], a ADT, produzida pelo Centro de Estudos em Sustentabilidade da Fundação Getúlio Vargas (FGVces), em parceria com organizações que atuam na rodovia e comunitários locais. Partindo da premissa de que um único projeto, isoladamente, não é capaz de transformar as diversas realidades locais, a publicação propõe 13 estratégias para consolidar o desenvolvimento dos territórios impactados pela repavimentação da rodovia.

“O que de fato mobiliza as aspirações locais? A ideia de prosperidade precisa ser disputada e expandida para além das bordas do asfalto, criando uma dinâmica que coloca o território no centro, em lugar da obra”, provoca a publicação. Uma das pesquisadoras que participaram da produção da agenda, a manicoreense Jolemia Chagas, pesquisadora da FGV e articuladora da Rede Transdisciplinar da Amazônia (Reta), destaca o caráter transversal, feminino e jovem, das estratégias. “As populações locais fazem parte dos primeiros passos da constituição da ADT e são fundamentais para a implementação das ações desenvolvidas. A inclusão de jovens e mulheres como lentes transversais da agenda, vem representada em demandas e proposições de soluções com caminhos definidos e checados por eles, possibilitando a participação dos mesmos na provocação e implementação das ações”, disse. “As combinações entre as 13 estratégias da ADT, apontam para ações sistêmicas executadas ou provocadas, seja via políticas públicas ou sociedade civil, visando mitigar ameaças existentes e intensificadas com a repavimentação da BR-319, sobretudo as que afetam grupos mais vulneráveis como mulheres, jovens e crianças”, explicou Jolemia.

Além da Reta, o Observatório BR-319 e as organizações membro Casa do Rio, Fundação Amazônia Sustentável (FAS), Instituto Internacional de Educação do Brasil (IEB) e Instituto de Conservação e Desenvolvimento Sustentável da Amazônia (Idesam) também contribuíram para a agenda. Ao todo, a construção da publicação contou com a participação de mais de 600 pessoas de cerca de 150 organizações que representam moradores de 64 comunidades rurais, tradicionais e urbanas de quatro territórios-alvo: distrito Realidade, próximo ao fim da rodovia, em Humaitá; a Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) Igapó-Açu, no Trecho do Meio, no município de Careiro Castanho; e as sedes dos municípios de Manicoré e Careiro Castanho. Todos foram escolhidos devido às pressões que sofrem com a repavimentação da rodovia.

“Tudo foi feito de forma participativa por comunitários, líderes de organizações de base, gestores públicos, representantes de Organizações da Sociedade Civil (OSC) e especialistas de instituições de ensino e pesquisa. Cada um trouxe para a ADT, a partir das suas experiências de atuação nos territórios, os desafios e as oportunidades que ela pode nos proporcionar em diversas frentes, seja via políticas públicas, iniciativas da sociedade civil de como incidir politicamente”, acrescentou Jolemia.

A gestora de projetos do FGVces, Carolina Derivi, explica que o trabalho de produção da ADT é muito oportuno, uma vez que em se tratando de outras grandes obras, no Pará e em Rondônia, ações semelhantes foram executadas com os empreendimentos em fase de instalação. “Em casos assim, as questões dos territórios ficam muito prejudicadas, pois são atropeladas por outras coisas urgentes. Assim não se tem amplo diálogo, organização de forças sociais e conhecimentos dispersos, que podem ser articulados para servir de atuação para a militância de base”, explicou Derivi.

“O planejamento territorial é um dos assuntos da maior importância para o contexto de mega obras de infraestrutura, sobretudo na Amazônia brasileira, e é algo que já estamos trabalhando há muito tempo, principalmente na área de políticas públicas, porque os territórios são invisibilizados nestes processos”, disse a gestora de projetos do FGVces. “Na Amazônia, as decisões substantivas são tomadas pensando em outros fatores, como as políticas setoriais e questões mais macroeconômicas, principalmente, as indústrias agroexportadoras, e os territórios não aparecem nesse planejamento. E, também, da mesma forma, na hora de se implementar. O que se tem é o instrumento do licenciamento ambiental, que acaba configurando uma sobrecarga da política ambiental, que é quando no licenciamento que o território se revela. Mas os desafios dos territórios transcendem em muito a política ambiental”, acrescenta Derivi.

Aplicação das estratégias

A publicação chama a atenção para um antigo problema vivido por moradores de municípios do interior do Amazonas, mas que se acentuou na pandemia de covid-19: a desigualdade social, em todos os sentidos. A presença de médicos no interior do estado é a menor entre todos os estados da região Norte, Manaus abriga 24 dos 37 equipamentos socioassistenciais de alta complexidade disponíveis no Amazonas, e 83% das matrículas de Ensino Médio estão localizadas somente em escolas urbanas. Isso e muito mais é usado como argumento por quem defende a repavimentação da BR-319 em detrimento ao respeito aos direitos dos povos da floresta. A ADT faz um alerta: A expectativa de que a pavimentação da BR-319 solucionaria o problema do acesso a bens e serviços públicos naturaliza as desigualdades estabelecidas entre os mundos rural e urbano.

“Isso se encaixa no que a ADT chama de ‘desenvolvimento cego’”, opinou Jolemia. “É preciso atentar para as necessidades e particularidades de cada território e, antes de tudo, ouvir o que essas populações querem”, acrescentou. “Com a ADT as populações locais têm a oportunidade de contribuir de forma participativa com a governança de seus territórios a partir de suas demandas reais, ao mesmo passo em que se nutrem de conhecimentos sobre o funcionamento das instituições formais governamentais, de conteúdos referentes a políticas públicas, da administração e gestão. Além de contribuírem com seus saberes junto a outros grupos sociais e de outros territórios”, disse Jolemia.

A pesquisadora diz, ainda, que os moradores, por meio dos movimentos sociais e organizações comunitárias formais ou não, podem utilizar a agenda propondo ações contempladas nela junto a órgãos gestores públicos, Organizações da Sociedade Civil (OSC) e até mesmo entidades empresariais. “A aplicação das estratégias pode ser proposta nos níveis municipal, estadual e federal, na composição do diagnóstico sobre quais capacidades públicas estão disponíveis e no desenho de quais as possibilidades de avanços na implementação de políticas públicas na região da BR-319”, explicou. “E, também, como sociedade civil organizada, as populações locais podem atuar via mecanismos de controle social já estabelecidos nas políticas públicas, como os conselhos, bem como incidir politicamente via associações comunitárias junto a construção e implementação e projetos em acordo com as demandas locais”, acrescentou.

Diversas possibilidades

A monocultura e a agropecuária, são vertentes econômicas bastante exaltadas no Brasil, mas que não distribuem riquezas e não mudam a realidade dos locais onde se instala na Amazônia. Prova disso são os Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) das cidades da região invadidas pelas atividades ligadas a elas. Quando a soja e o boi, por exemplo, chegam, normalmente, trazem violências e todo tipo de violações, expulsando indígenas, ribeirinhos, agroextrativistas e todas as pessoas que vivem há gerações em territórios ancestrais ou tradicionalmente ocupados. Na BR-319, onde a produção monocultora e a agropecuárias ainda são incipientes, elas já provocam prejuízos e ganha adeptos junto aos que defendem a repavimentação da rodovia a qualquer custo.

Sistemas produtivos que privilegiam a agricultura familiar devem ser prioridade em ações voltadas para a economia. Foto: FGVces

“No contexto amazônico, os sistemas produtivos que integram o conceito de ‘agricultura familiar’ são fundamentais para a sustentabilidade e autonomia das famílias, frente aos modelos vinculados à expansão do agronegócio e a práticas predatórias e ilegais, que se baseiam na exploração exaustiva dos recursos. Os sistemas rurais familiares são caracterizados pela produção constante e diversificada de produtos e alimentos e pela ocupação das famílias em diferentes atividades e ambientes. Os alimentos são obtidos principalmente pela produção de subsistência e por trocas e doações, processos que fortalecem a manutenção dos laços comunitários”, diz a ADT no capítulo em que fala sobre sistemas da agrobiodiversidade promotores da segurança alimentar e nutricional.

“O que vemos nestes territórios é exatamente isso, no entanto, a realidade que vem sendo imposta é grave e ameaçadora. A questão fundiária e a insegurança territorial ameaçam a existência dessas comunidades tradicionais”, avaliou Jolemia. “Na minha opinião, o primeiro passo para superar essa dificuldade é garantir por meio da regularização fundiária os territórios de uso ancestral para as populações tradicionais. Bem como, cumprir as recomendações da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC-MPF) para a implementação do programa Titula Brasil, além de dar ampla visibilidade às ações de regularização ambiental”, disse. Jolemia acrescenta que as garantias dos direitos de populações tradicionais e indígenas, a priorização de Cadastros Ambientais Rurais (CAR) coletivos e termos de adesão ao Planos de Regularização Ambiental (PRA) e fundiária nos assentamentos, entre Incra e municípios, também ajudaria. Outros, mecanismos de proteção, como por exemplo, o direito das populações tradicionais e indígenas a consulta prévia livre informada, segundo a OIT169.

E destaca: “Mas o que mais vê hoje são mudanças drásticas de uso do solo e da água por atividades predatórias como retirada da cobertura florestal convertida em madeira, pasto e produção de monocultivos e garimpo. É importante substituir pelo apoio a ações de fortalecimento das cadeias produtivas da agrobiodiversidade, dentre elas a da castanha e da seringa nos territórios, padronizar e adequar os produtos a normas vigentes e diminuir processos burocráticos para licença de manejo e comercialização de pequenos empreendimentos comunitários, sobretudo em áreas não protegidas”, finalizou.

A Agenda de Desenvolvimento Territorial da Região da BR-319 já está disponível na internet. O lançamento oficial da publicação aconteceu em evento virtual, no dia 10 de agosto, e contou com a participação de diversas lideranças dos territórios.

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